A gastronomia molecular esteve em seu auge durante o começo do milênio, principalmente através dos cardápios de Ferran Adrià no (já fechado) elBulli Restaurante.
O que poucos sabem é que os anos 2000 não marcam o nascimento deste movimento e tão pouco o encerram.
Na sequência de fatos que compilei nesta matéria, você entenderá (entre outras coisas):
- Quem foram os verdadeiros “pais” da cozinha molecular;
- As origens pré-modernas da ciência na cozinha;
- A participação (raramente comentada) das mulheres no processo;
- E a ascensão do elBulli Restaurante.
E, claro, os motivos que levaram a gastronomia molecular sair de cena na mídia e nos principais cardápios da alta gastronomia.
A história da cozinha molecular nos leva à muitos Chefs e momentos. Diversos cozinheiros e cozinheiras deram os primeiros passos para o princípio da cozinha molecular: unir ciência e culinária.
Para (tentar) deixar o conteúdo mais claro, eu separei o conteúdo em três fases principais: as origens, a cozinha molecular como disciplina e a ascensão dos chefs da gastronomia molecular.
As origens da gastronomia molecular
Marie-Antoine Câreme é um nome conhecido para os estudantes de gastronomia. Chef francês do século XIX, ficou conhecido por criar o que hoje chamamos de haute cuisine (alta cozinha). Ele já dizia, na época, de uma atenção especial de devemos ter na lentidão da cocção de caldos de carne.
De acordo com Câreme, uma temperatura alta demais poderia coagular a Albumina, deixando-a dura e impedindo que a parte gelatinosa se soltasse.
A Albumina era uma proteína recém-descoberta e muito pesquisada pelos cientistas no século XIX, indicando que a ciência dava seus primeiros passos para dentro da cozinha já naquele momento.
A ciência e culinária ganharia mais corpo mais de um século depois, em 1932, com um livro escrito por Belle Lowe.
Professora de alimentos e nutrição na Iowa State College, ela compilou exaustivamente várias aplicações da ciência na culinária do dia a dia — como a química coloidal (gelificação), fatores que afetavam a cremosidade de sorvetes e a coagulação de proteínas.
O feito foi seguido quase dez anos depois pelas professoras Evelyn Halliday e Isabel Noble. A obra explorava como os conhecimentos de química poderiam ajudar na preparação e preservação de alimentos. Os capítulos exploraram temas como a química no leite, o funcionamento dos fermentos químicos e a concentração de hidrogênio em alimentos.
Apesar disso, a cozinha molecular só foi ganhar esse nome e chamar a atenção da mídia décadas depois.
Cozinha molecular como disciplina
No final dá década de 1960, o físico húngaro chamado Nicholas Kurti apresentou uma palestra na Royal Institution de Londres. Através de experimentos curiosos, ele demonstrou como profundos conhecimentos em física tinham aplicações práticas na cozinha. O que ele chamava, até então, de “gastrofísica”.
Acho que é uma triste reflexão sobre nossa civilização que, embora possamos medir e precisar a temperatura na atmosfera de Vênus, não sabemos o que se passa dentro de nossos suflês. — Nicholas Kurti
A palestra foi um grande sucesso e o físico chegou até mesmo a fazer um programa de TV dedicado a explorar a ciência na culinária. Nicholas Kurti promoveria seus conhecimentos para o mundo, décadas depois, em uma série de workshops organizados a convite de Elizabeth Cawdry Thomas.
Elizabeth era professora de culinária nos EUA, participava de muitas conferências científicas, tinha inúmeras amizades no campo científico e até mesmo havia se casado com um físico. Ela considerava muito importante a ciência da culinária e decidiu organizar um Workshop sobre o tema em uma universidade localizada em Erice (na Sicília).
Para a equipe organizadora, foram chamados também Harold McGee (redator especializado em gastronomia) e o (até então) jovem editor Hervé This. O workshop foi um sucesso e aconteceu anualmente de 1992 a 2004. As diversas palestras e apresentações atraíram chefs de várias partes do mundo, em especial da França e Inglaterra.
Entre os chefs que participaram dos workshops de Gastronomia Molecular em Erice, se destacaram:
- Raymond Blanc: chef autodidata do Belmond Le Manoir aux Quat’Saisons (restaurante inglês com 2 estrelas Michelin);
- Heston Blumenthal: um dos principais representantes da gastronomia molecular nos dias de hoje e chef do Fat Duck (restaurante inglês com 3 estrelas Michelin);
- e Pierre Gagnaire: considerado um dos chefs na vanguarda da cozinha de fusão, é dono do restaurante homônimo (onde conquistou 3 estrelas Michelin).
Apesar de pouco movimentados para padrões atuais, causaram grande impacto. Tais workshops recebiam entre 40 e 50 pessoas em suas edições anuais. E também é importante destacar que, a cada 5 visitantes destes Workshops, apenas 1 era chef de cozinha.
Ainda assim, os workshops de Erice criaram um forte movimento na gastronomia internacional.
Meat Fruit at Dinner: um dos preparos mais icônicos de Heston Blumenthal, é na verdade uma variedade de terrina do Fat Duck em que se combina fígado de galinha com foie gras (numa cocção em sous vide) e uma redução de vinhos madeira, porto branco, porto rubi e conhaque. | Foto: Eater (reprodução)
Curiosidade: a origem do nome “gastronomia molecular”
De acordo com Harold McGee em matéria para o site Curious Cook, este não era o nome original do workshop.
O primeiro título, concebido por Nicholas e Elizabeth era “Science and Gastronomy” (Ciência e Gastronomia), porém o diretor do Centro Ettore Majorana for Scientific Culture (onde os eventos aconteceram) pediu a alteração no nome para torná-lo mais adequado para uma palestra científica.
A Biologia Molecular — campo que estuda as moléculas específicas que são base dos seres vivos, em especial o DNA — era a pauta do momento do momento e Nicholas Kurti se inspirou no tema para criar um título mais moderno e chamativo para um workshop científico.
Nasceu assim o nome “Molecular and Physical Gastronomy” (Gastronomia Física e Molecular). O nome viria a mudar novamente após a morte, em 1998, de Nicholas Kurtis. A partir do ano seguinte, Hervé This rebatizou o workshop para “International Workshop on Molecular Gastronomy ‘N. Kurti.” (Workshop internacional de Gastronomia Molecular N. Kurti).
O El Bulli de Ferran Adrià
Curiosamente, um dos maiores nomes da gastronomia molecular — o espanhol Ferran Adrià — jamais esteve nos workshops de Erice. Junto de Heston Blumenthal, os dois chefs foram os principais nomes na divulgação dos usos da ciência dentro da cozinha de alto padrão.
Porém ambos não vinculam o termo molecular seus estilos. O próprio Ferran Adrià não reconhece sua cozinha como gastronomia molecular. O mais comum é que se refira ao seu estilo como “cozinha modernista” ou “desconstrutivista”.
Quando observamos cronologicamente suas principais criações, percebemos como as técnicas da gastronomia molecular foram sendo inseridas aos poucos. Um processo que equipe de Adrià vinha realizando há anos:
A partir da década de 1990, a equipe do elBulli formada por Ferran Adrià, seu irmão Albert Adrià, Juli Soler e Oriol Castro, começariam a utilizar com mais intensidade técnicas da gastronomia molecular em suas preparações.
Textured Vegetable Panaché (1994): um dos ícones do estilo do elBulli, onde Adrià rompeu com todas as expectativas sobre como deveria ser um panaché de legumes (típico da culinária mediterrânea) | Foto: elBulli Foundation (reprodução).
Em 1998, a equipe do elBulli refinaria suas técnicas e avançaria na direção de um novo movimento da gastronomia. Chamada de “cozinha essencial”, a proposta envolvia desenvolver pratos que focavam em pouquíssimos ingredientes.
Um dos pratos mais representativos desta fase foi lançado em 1998 e envolvia apenas dois ingredientes: lagosta-da-Noruega (uma espécie de lagostim do mar) e água.
Novas texturas e sabores eram obtidos através dos usos da geleia quente (mesma do prato acima) e de uma nova técnica de extração da essência do lagostim a partir de sua cabeça.
Caso você queira aprender mais sobre os pratos icônicos do elBulli e como as técnicas de Ferran Adrià mudaram os rumos da gastronomia da Espanha, recomendo dar uma olhada nessa sequência de imagens, vídeos e textos desenvolvidos pela Google Arts & Culture sobre o assunto.
A gastronomia molecular morreu?
Com o passar dos anos, o “hype” da cozinha molecular deu lugar a um uso mais cotidiano das técnicas.
O principal motivo é que, durante o auge do movimento, nos anos 2000, diversos restaurantes formaram brigadas robustas e tecnologicamente bem equipadas para atender uma cliente cada vez mais ávida por novidades – gerando custos que não eram cobertos pelo faturamento do menu.
O elBulli fechou suas portas em 2011, porém Adrià já havia declarado que o elBulli (enquanto restaurante) não gerava lucros há anos.
A conta fechava por conta da venda de seus livros, palestras e assessorias para grandes empresas do setor de alimentação (como Nestlé, Kraft e PepsiCo). E este passou a ser o novo modelo de negócio do chef, que inaugurou anos depois um centro de pesquisas dedicado ao tema (onde permanece até hoje).
Apesar de alguns restaurantes ainda utilizarem o apelo da gastronomia molecular, como é o caso do Fat Duck (do chef Heston Blumenthal), a grande maioria seguiu por outro caminho. Hoje, boa parte dos restaurantes utiliza as técnicas e equipamentos descobertos na gastronomia molecular, porém como parte de seus próprios estilos e menus.
Logo, a gastronomia molecular não morreu, só foi inserida de maneira natural às cozinhas de alto padrão ao redor do mundo.
Para quem quer saber mais
Em 2014, Ferran Adrià veio ao Brasil e concedeu uma entrevista ao programa de TV Roda Viva (TV Cultura). Na bancada de entrevistadores, estavam diversos críticos de gastronomia e a chef Helena Rizzo (do restaurante Maní e hoje também jurada do programa MasterChef).
Na entrevista, Adrià esclarece melhor as mudanças que o elBulli passou e que levaram o restaurante a fechar as portas, inclusive afirmando que o elBulli nunca deu prejuízos a partir de sua perspectiva.
O programa, na íntegra, você pode assistir abaixo:
Referências
Segue abaixo a lista de fontes de informação que foram utilizadas para produzir este conteúdo:
Entrevista de Thomas Keller para Jennifer Iannolo do Gilded Fork.
‘O que é cozinha molecular?’, escrito pela Marcella Coser ao site Dani Noce
Arquivo de Belle Lowe na Universidade de Iowa
Entrevista de Raymond Blanc, em que comenta sobre sua história com Nicholas Kurti
Artigo da Pesquisa FAPESP sobre Hervè This: ‘o homem que descozinhou o ovo’.