Imagine a seguinte situação: seu restaurante está cheio. Os clientes estão satisfeitos, os pratos saindo numa boa da cozinha. O expediente encerra, tudo saindo nos conformes. Sucesso de dia. Horas depois começam as primeiras reclamações. Alguns comensais passaram muito mal e não saem do banheiro. Alguns foram para o pronto socorro.
Em não mais que alguns dias, você recebe uma notificação da Vigilância Sanitária: vários clientes foram parar no hospital depois de comerem no seu restaurante.
O que deu errado? Provavelmente, a contaminação cruzada.
Este guia vai ajudar você a entender e prevenir esse problema que afeta desde pequenos bistrôs até grandes restaurantes (e, principalmente, restaurantes industriais e corporativos).
Não importa se você é um chef experiente, um gestor, um novo empreendedor ou alguém que sonha em abrir seu próprio negócio de alimentação – a informação aqui pode salvar seu restaurante e, mais importante, a saúde dos seus clientes.
O QUE VOCÊ VAI ENCONTRAR NESTE GUIA
- O que é contaminação cruzada e por que você deve se preocupar
- Os diferentes tipos de contaminação que afetam restaurantes
- Dados reais sobre doenças transmitidas por alimentos no Brasil
- O que a lei exige do seu estabelecimento
- Medidas práticas para prevenir problemas
- Como treinar sua equipe de forma eficaz
- Soluções especiais para restaurantes pequenos
- Perguntas frequentes e mitos sobre segurança alimentar
Entenda o que é a contaminação cruzada e as DTAs
O que é contaminação cruzada?
Contaminação cruzada é quando micróbios, bactérias, vírus ou outras substâncias nocivas de um alimento passam para outro. É como se o problema de um alimento (cru ou já estragado, normalmente) “cruzasse” para outro que estava limpo.
Isso acontece de duas formas principais:
Contaminação direta: quando um alimento contaminado toca diretamente outro alimento.
- Exemplo: O suco de uma carne crua que pinga sobre uma salada pronta para consumo. A imagem abaixo é exagerada, mas o mínimo respingo de carne crua (principalmente frango) pode contaminar e causar uma DTA — principalmente se a salada não for posteriormente lavada com hipoclorito ou algum procedimento de sanitização (só água corrente não resolve o problema contra a contaminação cruzada)
Contaminação indireta: quando a contaminação passa por um intermediário.
- Exemplo: Usar a mesma faca para cortar carne crua e depois cortar tomates sem lavar a faca entre os usos. O mais comum é isso acontecer com tábuas de corte e nisso cai o que comentei antes sobre a água corrente não ser suficiente. Bactérias se alojam em pequenas fissuras das tábuas (principalmente se forem de madeira, daí serem proibidas no Brasil). O ideal é ter tábuas e facas separadas para cada setor (açougue / alimentos crus)
O que são DTAs e quais os perigos?
DTA significa “Doença Transmitida por Alimento” – qualquer problema de saúde causado pelo consumo de alimentos ou bebidas contaminados.
É claro que é um nome muito abrangente e tem muitos tipos de DTA. Cada bactéria ou vírus vai causar um N número de sintomas diferentes e ter maior ou menor risco de mortalidade.
Por exemplo, apenas casos raros de intoxicação por Salmonella levam a óbito (apesar dos sintomas graves que causam) e um pedaço de plástico ou cabelo na sopa gera apenas constrangimento para o restaurante.
Já contaminação por E. Coli também tem baixos riscos de óbito imediato, mas — por sua persistência, já que é muito difícil combatê-la por completo no estômago depois de contaminado (mesmo com tratamento) — ela gera sérias perturbações gastrointestinais que podem levar a problemas mais sérios como câncer anos depois.
Já outras DTAs, como a contaminação por Clostridium Botulinum, o famoso botulismo, ou um produto de limpeza que caiu na comida pode matar em poucas horas. E não pense que, por mais raro que seja, o botulismo está fora da realidade brasileiro: em 2024, duas pessoas morreram em Salvador e outras quatro foram diagnosticadas com a mesma doença1.
Mas, mesmo em situações menos graves, DTAs causam um baita estrago na saúde. Quando vítimas de contaminação cruzada, as vítimas de DTA costumam apresentar sintomas em comuns, que são esses:
- Dor de estômago
- Náuseas e vômitos
- Diarreia
- Febre
- Dor de cabeça
Podem parecer sintomas simples, mas para crianças, idosos e pessoas com sistema imunológico frágil, uma DTA pode ser muito grave e até fatal.
Um problema mundial
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)2, as DTAs fazem uma em cada dez pessoas adoecerem anualmente no mundo.
O resultado? Cerca de 420 mil mortes por ano – muitas delas poderiam ser evitadas com medidas simples de higiene.
Os três tipos de contaminação cruzada em alimentos
Antes de prevenir a contaminação cruzada, é fundamental entender que ela pode acontecer com diferentes tipos de contaminantes. Nem sempre o problema está nas bactérias que não podemos ver. Às vezes está no pedaço de plástico que caiu no molho ou no produto de limpeza que ficou perto demais dos ingredientes.
Conhecer estes três tipos de contaminação ajuda sua equipe a identificar riscos que muitas vezes passam fora do radar. Cada tipo exige suas próprias medidas de prevenção, mas todas são igualmente importantes para evitar contaminação cruzada.
1. Contaminação Física
É quando objetos estranhos caem ou são misturados aos alimentos.
- Exemplos: cabelos, pedaços de embalagem, fragmentos de metal, vidro, plástico, joias, unhas postiças.
- Como prevenir: uso de toucas, uniforme adequado, não usar acessórios durante o preparo, proteger lâmpadas contra quebra e (principalmente) ter um fluxo muito bem definido de descarte de embalagens de ingredientes.
2. Contaminação Química
Ocorre quando produtos químicos entram em contato com os alimentos.
- Exemplos: produtos de limpeza, pesticidas, resíduos de desinfetantes.
- Como prevenir: armazenar produtos químicos longe dos alimentos, enxaguar bem utensílios após limpeza, seguir instruções de diluição dos produtos.
3. Contaminação Biológica
A mais comum e perigosa – acontece quando microrganismos como bactérias, vírus, parasitas ou fungos contaminam os alimentos.
Exemplos comuns:
- Salmonella (em ovos, frango e carnes)
- E. coli (em carne moída mal passada)
- Listeria (em queijos, leites não pasteurizados)
Como prevenir: controle de temperatura, higiene pessoal rigorosa, cozimento adequado dos alimentos.
A realidade das DTAs no brasil
Dados que você precisa conhecer
- Aproximadamente 34,5% dos surtos de DTAs no Brasil são causados por alimentos crus, como ovos e carnes vermelhas.
- Cerca de 40% das doenças transmitidas por alimentos em países da América Latina ocorrem durante o preparo e manipulação – ou seja, poderiam ser evitadas na cozinha!
- Entre 2014 e 2017, foram registrados 85 surtos relacionados apenas à Salmonella no Brasil, causando 3.433 casos de doença e 2 mortes.
Por que o Brasil é mais vulnerável?
No Brasil, enfrentamos condições particulares que aumentam os riscos de contaminação alimentar quando comparados a países de clima temperado.
Nosso clima tropical, bem quente durante grande parte do ano, cria esse ambiente ideal para a multiplicação acelerada de bactérias e outros microrganismos. Enquanto em países mais frios as bactérias se desenvolvem mais lentamente, aqui elas encontram condições perfeitas para se reproduzirem rapidamente, transformando um pequeno problema em um risco enorme em questão de horas.
Além disso, nossa cultura gastronômica valoriza e celebra o consumo de diversos alimentos crus ou parcialmente cozidos. Das saladas frescas e sucos naturais presentes diariamente em nossas mesas aos pratos típicos como carpaccio e ceviches, sem esquecer da tradicional carne de churrasco servida “ao ponto” ou “malpassada”.
Todos representam pontos de vulnerabilidade para contaminação. Esses hábito de procurar mais frescor nos alimentos, por mais que sejam uma parte muito bonita da nossa cultura, exigem cuidados redobrados na manipulação e preparo dos alimentos.
Um terceiro fator complicador está na infraestrutura de refrigeração e na logística de distribuição de alimentos em um país de dimensões continentais. Em muitas regiões brasileiras, especialmente em áreas mais afastadas dos grandes centros, manter a chamada “cadeia de frio” é um verdadeiro desafio.
O transporte de alimentos perecíveis por longas distâncias, frequentemente sob calor intenso e em estradas nem sempre em condições ideais, compromete a qualidade e a segurança dos produtos. Mesmo nos centros urbanos, oscilações no fornecimento de energia ou equipamentos de refrigeração inadequados em pequenos estabelecimentos criam brechas para a proliferação de microrganismos.
Essa combinação de fatores – clima favorável à multiplicação de patógenos, preferências culturais por alimentos crus ou pouco processados, e desafios logísticos na manutenção de temperaturas adequadas –exige atenção redobrada dos profissionais da área de alimentação no Brasil.
Por isso, as boas práticas de manipulação de alimentos não são apenas recomendações, mas necessidades absolutas para garantir a segurança do consumidor brasileiro.
O impacto para seu negócio
Um único surto de contaminação alimentar desencadeia uma série de consequências — algumas devastadoras — para o seu estabelecimento, indo muito além dos danos à saúde dos clientes.
Seu restaurante pode enfrentar processos judiciais extremamente custosos, tanto em termos financeiros quanto de tempo e energia da gestão.
Simultaneamente, a Vigilância Sanitária certamente vai aplicar multas e sanções que podem variar de alguns milhares a milhões de reais, dependendo da gravidade do caso.
Em situações mais sérias, seu estabelecimento pode sofrer interdição temporária, paralisando completamente as operações por dias ou semanas, ou até mesmo enfrentar o fechamento permanente.
Talvez o dano mais duradouro seja à reputação do seu restaurante, construída ao longo de anos e destruída em questão de dias com avaliações negativas, comentários nas redes sociais e reportagens na mídia local. O resultado é inevitável: uma queda drástica e muitas vezes irrecuperável no faturamento, que pode levar até mesmo o melhor dos restaurantes à falência.
Quer um exemplo de caso? Confira essa notícia da TV Vip a respeito do restaurante que foi interditado em Itapema (cidade litorânea de Santa Catarina)
O que diz a lei sobre contaminação cruzada em alimentos em restaurantes?
A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) da ANVISA constitui o principal marco regulatório para serviços de alimentação no Brasil, estabelecendo padrões rigorosos que seu estabelecimento deve seguir.
Esta norma é que usamos como referência nos restaurantes, lanchonetes e todo tipo de estabelecimento que sirva comida. E ela exige que todo negócio do tipo deve garantir condições de infraestrutura adequadas, com pisos, paredes e tetos de material liso, lavável e impermeável, além de iluminação e ventilação apropriadas.
Ela também exige:
- Fluxo ordenado de produção
- Controle de pragas
- Higiene dos manipuladores
- Qualidade da água
- Manejo correto dos resíduos
Atender a essas exigências não é apenas uma questão de conformidade legal, mas um compromisso fundamental com a saúde pública e a segurança dos comensais.
Dica: o documento mais recente é o da RDC nº 216/2004.
Manual de Boas Práticas: obrigatório para seu restaurante
Todo estabelecimento que manipula alimentos deve ter um Manual de Boas Práticas e os Procedimentos Operacionais Padronizados (POPs). Além de obrigatórios para as auditorias da vigilância, acabam sendo um documento essencial para diminuir o risco de contaminação cruzada no restaurante.
Esses documentos descrevem:
- os procedimentos adotados para garantir a qualidade dos alimentos;
- as rotinas de higienização de instalações e equipamentos;
- os processos de controle de pragas e potabilidade da água;
- e como deve ser o treinamento da equipe.
Medidas práticas para prevenir a contaminação cruzada
Organizando o fluxo de trabalho
Pense na cozinha como uma linha de produção que deve seguir sempre um caminho do “mais sujo” para o “mais limpo”:
- Recebimento de mercadorias
- Armazenamento
- Pré-preparo (lavar, descascar, cortar)
- Preparo (cozinhar, assar, fritar)
- Distribuição/Serviço
Dica para restaurantes pequenos: se você não puder ter áreas separadas, faça a separação por horários.
- Exemplo: realize todo o pré-preparo de carnes cruas em dado horário, higienize/sanitize tudo e então libere a área para o preparo de saladas.
Sistema de cores para utensílios
Adote um código de cores para tábuas, facas e outros utensílios:
- VERMELHO: carnes vermelhas cruas
- AMARELO: aves cruas
- AZUL: peixes e frutos do mar crus
- VERDE: frutas, legumes e verduras
- BRANCO: laticínios e pães
- MARROM/BEGE: alimentos cozidos prontos para consumo
Práticas de higienização eficaz
Para as mãos:
- Molhe as mãos
- Aplique sabonete líquido
- Esfregue por pelo menos 20 segundos (inclusive entre os dedos e embaixo das unhas)
- Enxágue bem
- Seque com papel toalha descartável
- Use álcool 70% após a lavagem
Quando lavar as mãos: ao chegar ao trabalho, após usar o banheiro, após manusear alimentos crus, após tocar no lixo, após tocar no rosto ou cabelo, após manusear dinheiro.
Parece exagero, mas a E. Coli (por exemplo) se transmite quase que predominantemente pelos alimentos pela falta de lavagem adequada de mãos.
Para superfícies e utensílios:
- Remova os resíduos visíveis
- Lave com água e detergente neutro
- Enxágue bem
- Sanitize com solução clorada (1 colher de sopa de água sanitária para 1 litro de água) ou álcool 70%
- Deixe secar naturalmente
Armazenamento seguro
O ideal é você jamais armazenar alimentos crus e cozidos no mesmo espaço, nem acondicionar os ingredientes de hortifruit na mesma geladeira/câmara que as carnes.
Porém, entretanto, pode ser difícil gerenciar isso em estoques menores. Se não for possível, tente ao menos criar uma separação na geladeira, organizando os alimentos de cima para baixo nesta ordem:
- Alimentos prontos para consumo
- Frutas, legumes e verduras higienizados
- Carnes pré-preparadas (temperadas)
- Carnes cruas (peixe, frango, bovina, suína)
Dicas importantes:
- Mantenha tudo bem fechado e identificado
- Nunca guarde alimentos em latas abertas – transfira para recipientes plásticos ou vidro
- Respeite as datas de validade e o sistema PVPS (Primeiro que Vence, Primeiro que Sai)
Geladeiras modernas e, principalmente, câmaras frias, possuem sistemas de resfriamento que funcionam com circulação do ar gelado com espécies de ventiladores. Isso ajuda a fazer com que todo o ar se movimento, formando verdadeiras rodovias para bactérias e vírus pularem de um alimento à outro.
Talvez seja esse o motivo de tanto ouvirmos os velhos fanfarrões de sempre comentando que EM CASA NUNCA FIZ ISSO E NINGUEM MORREU (sempre tem um, né?). Além de sujeira e alimentos estragados serem mais fáceis de limpar numa geladeira doméstica (tanto pela quantidade, quanto pelo fato que geralmente nos restaurantes SEMPRE estão lotadas), a circulação de bactérias acaba sendo menor também.
Então acondicione com prudência e separe alimentos prontos / pré-preparados / prontos para consumo. E tente, no máximo possível, tampar e isolar os alimentos prontos.
A contaminação cruzada por alérgenos: um risco pouco conhecido e fatal
A maioria das pessoas compreende que a contaminação cruzada pode transmitir bactérias e outros microrganismos entre alimentos. Porém, há um tipo de contaminação cruzada menos conhecido, mas igualmente perigoso, que envolve alérgenos alimentares – substâncias capazes de provocar reações alérgicas graves em pessoas sensíveis.
O que são alérgenos alimentares?
Os alérgenos são principalmente proteínas ou glicoproteínas presentes em alimentos que, para a maioria das pessoas, são completamente inofensivos. No entanto, para indivíduos com alergias, mesmo quantidades mínimas – às vezes microscópicas – podem desencadear reações que variam de leves a potencialmente fatais.
Embora mais de 170 alimentos tenham sido identificados como potenciais causadores de alergias, a maior parte dos casos (cerca de 90%) está relacionada a apenas oito ingredientes (foque neles!):
- Leite e derivados
- Glúten (presente no trigo, centeio e cevada)
- Ovos
- Amendoim
- Frutos do mar (crustáceos como camarão e lagosta)
- Peixes
- Soja
- Castanhas e nozes
Quando a Contaminação Cruzada por Alérgenos Se Torna Fatal
Infelizmente, existem casos documentados de reações fatais por contaminação cruzada de alérgenos em restaurantes. Em 2024, um jovem britânico de 19 anos, Idris Qayyum, faleceu durante uma viagem à Turquia após consumir uma sobremesa em um hotel.
Mesmo tendo alertado os funcionários sobre sua alergia severa a amendoim e recebido garantias de que o prato estava seguro, ele sofreu uma reação anafilática fatal. A investigação posterior revelou que havia traços de amendoim na sobremesa, provavelmente devido à contaminação cruzada na cozinha do hotel3.
Este caso é um forte exemplo do perigo real que a contaminação cruzada por alérgenos representa.
Para pessoas com alergias graves, mesmo quantidades mínimas de um alérgeno – invisíveis a olho nu – podem desencadear uma reação anafilática, que sem tratamento imediato com adrenalina injetável pode levar à morte em questão de minutos.
Como Acontece a Contaminação Cruzada por Alérgenos
A contaminação cruzada de alérgenos pode ocorrer de diversas formas em um restaurante:
- uso compartilhado de equipamentos: utilizar o mesmo ralador para queijo e depois para alimentos sem laticínios;
- superfícies de trabalho: preparar um prato com amendoim e depois outro sem limpar adequadamente a bancada;
- utensílios: usar a mesma colher para servir vários pratos sem lavar entre os usos;
- óleo de fritura: fritar camarão e depois batatas no mesmo óleo, transferindo proteínas de frutos do mar;
- armazenamento inadequado: guardar alimentos contendo alérgenos acima de alimentos sem alérgenos (o gotejamento pode causar contaminação)
- manuseio: tocar em um alimento alergênico e depois em outro sem lavar as mãos
- e até mesmo por conta de farinha que ficou flutuando no ar: em padarias, a farinha de trigo em suspensão no ar pode contaminar produtos que deveriam ser sem glúten.
Mantenha informações atualizadas sobre os alérgenos presentes em cada prato do cardápio e nunca subestime uma alergia alimentar relatada por um cliente
Lembre-se: quando um cliente com alergia severa questiona sobre a presença de um alérgeno, responder “acredito que não tem” não é suficiente. Se houver qualquer dúvida, é melhor dizer que não pode garantir a ausência de contaminação cruzada.
A implementação de protocolos rigorosos para prevenir a contaminação cruzada por alérgenos pode salvar vidas e proteger seu estabelecimento, demonstrando um compromisso genuíno com a segurança e o bem-estar de todos os clientes.
Como treinar sua equipe para evitar a contaminação cruzada
Implementar protocolos de segurança alimentar em um restaurante vai muito além de simplesmente criar regras e esperar que sejam seguidas. Na prática, mesmo as equipes mais bem-intencionadas enfrentam resistências internas que dificultam a adesão consistente aos procedimentos.
Entender o que se passa na mente de seus colaboradores é o primeiro passo para superar essas barreiras invisíveis.
Quando um funcionário decide pular uma etapa de higienização ou usar o mesmo utensílio para diferentes alimentos, raramente é por má-fé ou preguiça – geralmente existem mecanismos psicológicos poderosos influenciando essas escolhas.
Vamos explorar o que realmente impede seus colaboradores de seguirem as boas práticas e como você pode transformar seu treinamento para superar essas resistências naturais.
Por que os funcionários nem sempre seguem as regras?
Entender as barreiras psicológicas ajuda a criar treinamentos mais eficazes:
- falta de percepção do risco: “nunca aconteceu nada antes, por que vai acontecer agora?”;
- pressa nos horários de pico: “não tenho tempo para lavar as mãos a cada 5 minutos”;
- rotina: “sempre fizemos assim e nunca deu problema”;
- e falta de exemplo da liderança: “se o chef não faz, por que eu deveria fazer?”.
Então perceba que nem sempre só treinar vai funcionar. É interessante avaliar primeiro como as coisas são feitas, como sempre foram feitas e quais são as limitações para fazer do jeito certo. Não dá para pedir para seu cozinheiro assoviar e chupar cana ao mesmo tempo torcendo para tudo dar certo.
Como fazer treinamentos que realmente funcionam
Torne o treinamento relevante:
- use exemplos reais de contaminação (como esses, que indicamos aqui em cima);
- mostre fotos e vídeos de casos graves (você fez careta ao ver? Então tá indo no caminho certo, mostre para eles também!);
- e fale sobre consequências legais e financeiras.
Torne o treinamento prático:
- 20% teoria, 80% demonstração e prática;
- use luz negra* e simuladores de “sujeira” para mostrar contaminação invisível;
- e faça dinâmicas em grupo.
* Hoje você consegue comprar essas lanternas com pouco mais de trinta reais pela internet.
E torne o treinamento contínuo:
- sessões curtas (15-20 minutos) frequentes são melhores que um único treinamento longo
- coloque lembretes visuais pela cozinha
- e crie uma rotina de verificação diária com checklist.
Como evitar contaminação cruzada em pequenos restaurantes
Ser proprietário de um restaurante pequeno não significa abrir mão de treinamentos de qualidade para sua equipe.
Mesmo com recursos limitados, é possível implementar um programa eficaz de capacitação em segurança alimentar aproveitando o que já está disponível. O SEBRAE e o SENAC oferecem diversos cursos online gratuitos que podem ser acessados a qualquer momento, enquanto a ANVISA disponibiliza cartilhas e guias práticos em seu site oficial.
Complementando esse material, existem inúmeros vídeos no YouTube de especialistas renomados em segurança alimentar que explicam conceitos complexos de forma didática e objetiva.
Uma estratégia eficiente é o sistema de multiplicadores, onde você seleciona um funcionário com maior aptidão ou interesse para participar de um treinamento mais completo e, posteriormente, esse colaborador compartilha o conhecimento com os demais colegas.
Essa abordagem reduz custos e desenvolve lideranças internas, fortalecendo a noção de que a responsabilidade é partilhada por todos.
Para maximizar a eficácia, reveze periodicamente a responsabilidade de liderar verificações de segurança entre diferentes membros da equipe, proporcionando a todos a experiência de assumir o papel de fiscalizador.
A chave para o sucesso está na consistência e na integração do treinamento à rotina diária.
Iniciar cada dia com 5 minutos de “bate-papo de segurança” antes da abertura do restaurante cria um ritual que mantém os temas de contaminação e higiene sempre em evidência. Nesses momentos, discuta brevemente um tópico específico ou relembre procedimentos essenciais para o dia, usando exemplos práticos e relevantes para seu estabelecimento.
Um checklist simplificado, focado apenas nos pontos mais críticos, é outra ferramenta poderosa que evita a sobrecarga de informações e direciona a atenção da equipe para o que realmente importa. Mantenha esse checklist visível em pontos estratégicos da cozinha e incentive seu uso constante até que se torne um hábito automático.
Complementarmente, criar um programa de reconhecimento como o “funcionário destaque em segurança alimentar do mês” adiciona um elemento de competição saudável e celebra publicamente aqueles que demonstram comprometimento exemplar com as boas práticas.
Essas estratégias simples, quando implementadas de forma consistente, criam uma cultura de segurança alimentar tão eficaz quanto programas mais elaborados e dispendiosos.
O segredo está em fazer da segurança um valor fundamental e não apenas um conjunto de regras a serem seguidas, transformando cada membro da equipe em um guardião da saúde dos comensais.
Mitos e dúvidas comuns sobre contaminação cruzada – Vapt Vupt
Posso usar o mesmo óleo para fritar diferentes alimentos?
Não é recomendado. O ideal é ter óleos separados especialmente para produtos alergênicos (como empanados com glúten) e alimentos de origem animal. Se não for possível, defina uma ordem de preparo: frite primeiro os alimentos neutros e depois, no final, aqueles que podem reagir com alergias.
Como garantir segurança em delivery?
Use embalagens adequadas que mantenham a temperatura, separe alimentos quentes dos frios, e oriente entregadores sobre cuidados no transporte. Crie um sistema de lacres que mostre se a embalagem foi aberta.
Por quanto tempo posso guardar alimentos preparados?
Alimentos preparados e mantidos sob refrigeração (até 4°C) devem ser consumidos em até 3 dias. Acima desse prazo, o risco de contaminação aumenta significativamente. Existem casos de validade menor ou maior, por conta da presença de certos ingredientes que aumentam o risco e contaminação (como o leite). O ideal é sempre pesquisar para a categoria daquele alimento.
Alimentos muito temperados não estragam ou demoram mais para estragar?
Temperos podem mascarar o gosto e cheiro de deterioração (aliás, foi assim que nasceu o hambúrguer!), mas não impedem a multiplicação de bactérias.
Congelamento mata todas as bactérias?
Nops! O congelamento apenas “adormece” as bactérias. Quando o alimento descongela, elas voltam a se multiplicar.
Se tem bom aspecto e cheiro, está bom para consumo, certo?
Claro… QUE NÃO! Muitas bactérias perigosas não alteram o cheiro, cor ou sabor dos alimentos.
Álcool 70% resolvem qualquer problema de contaminação cruzada?
Mais ou menos (mais para menos). O álcool é eficiente contra muitos microrganismos, mas não substitui a lavagem adequada e não é eficaz na presença de matéria orgânica (como restos de comida). O alcool é ideal para o processo de sanitização, que é a eliminação de micro organismos que permaneceram nas superfícies de bancadas mesmo após a lavagem com água e sabão (essa sim essencial).
E aqui encerro esse conteúdo de hoje. Evitar a contaminação cruzada é importantissimo e de tamanha importância que os restaurantes de grandes redes, principalmente aquelas instaladas dentro de indústrias, contratam equipes inteiras (alô técnicos em nutrição! o/) só para a manipulação de alimentos.
Então não deixe de monitorar os riscos dentro das suas operações e, qualquer dúvida, só deixar aqui embaixo nos comentários.
Até a próxima!
Leia também:
- O que é gestão?
- Como diminuir CMV do restaurante?
- Como fazer fichas técnicas para restaurantes: um guia rápido
Referências citadas no texto
- Você pode conferir a notícia completa em “Mortes por botulismo na Bahia: entenda surto da doença e relação dos casos com mortadela”, notícia em parceria da G1 e da TV Bahia. ↩︎
- Você pode conferir os dados completos no estudo da OMS disponível em “Estimating the burden of foodborne diseases”, no site oficial da organização. ↩︎
- Saiba mais sobre o caso em “Boy with peanut allergy dies after eating dessert that staff assured didn’t contain nuts”, notícia de Benedict Tetzlaff-Deas e James Gamble para o The Mirror. ↩︎